- Toda a gente diz que sou obcecada por mim própria... Não acho isso. Acho que todos nós temos um narcisismo saudável cá dentro.
Tudo se torna mais claro aqui de cima. O perfume do meu quarto traz-me velhas recordações. O teu cheiro, o teu sorriso, ficaram para sempre entranhados no papel de parede que a mãe tanto insistiu para colocar. As velas de jasmim... as fotografias, as minhas fotografias, as fotografias de mim. Foste embora... fiquei comigo mesmo. Ao início adormecer é difícil, sabes que nunca consegui adormecer sem a tua respiração e nunca consegui respirar cada vez que ias embora.
Começa como uma aprendizagem. Um processo de cura com os seus efeitos secundários. A mãe diz que devemos gostar de nós próprios. Que ninguém pode gostar mais de nós do que nós mesmos. Contigo aprendi a gostar de mim. Aprendi a estar comigo, a "namorar-me". Até que não consegui estar com ninguém. Ninguém além de mim. Gosto de olhar para mim antes de adormecer. Nunca tinha olhado para mim a dormir...
O outro dia sonhei com um rapaz... Tinha uma cara familiar, uma cara branca como a neve e uns olhos de um verde profundo. O cabelo dourado aos caracóis fez-me lembrar um anjo, aqueles "anjinhos" das ilustrações dos livros que a mãe me lia antes de dormir. Os lábios encarnados sorriam para mim. Perguntei quem era. Ele apenas sorriu e virou costas. Subiu a escada de vidro em espiral e eu segui-o. A escada terminava num jardim. Um jardim com estátuas. Estátuas imperfeitas, pelo menos aos meus olhos elas eram imperfeitas. Havia também um lago. A água limpa reflectia um céu de cor purpura. Fez-me lembrar um céu de um final de tarde solarengo.
- Cuidado com o corvo branco. - Disse ele. - Que corvo? Perguntei eu. - O corvo que conta mentiras baixinho ao ouvido. - Responde ele sempre de sorriso na cara. Tudo isto me pareceu lógico. - Porque estás tão feliz? - Hoje é o meu aniversário. - Ai sim? O que recebeste? - Não se trata de receber mas sim de dar. Dou-te a entender que a beleza exterior não é eterna, tudo isto é efémero. - Não se tratava mais de um jardim mas sim de um monte de ervas mortas e um lago seco. As estátuas deram lugar a ruínas e eu não falava mais com aquele rapaz. O sorriso encarnado e os mesmo olhos verdes profundos onde me perdi estavam agora na cara de um velho que eu não reconhecia. Corri para as escadas. Os estilhaços de vidro cortavam os meus pés nus. O rasto vermelho que deixava para trás contrastava com o céu negro que parecia engolir-me.
Demorei tempo a perceber o meu sonho, a perceber as palavras e os momentos. A imagem do jovem tornado velho aterroriza-me noite após noite. Eu nunca vou ser assim, tudo o que eu tenho sou eu, a minha beleza. Quando chega a iluminação chega também o medo. O medo de deixar tudo para trás, o medo do vidro que corta. O medo que talvez seja o corvo branco, ainda não percebi. Engraçado que à medida que desenho padrões no meu pulso só consigo pensar em ti, no entanto, faço isto por mim. Um rasto vermelho que agora deixa para trás aquilo em que eu não me quero tornar.
Toda a gente diz que sou obcecada por mim própria... Não acho isso. Apenas quero ser sempre assim. Linda como todos dizem, como tu deixaste de dizer. Vejo-me deitada na minha cama. Na cama onde um dia nos deitámos. Acaricio a minha cara. Beijo os meus olhos fechados. O meu corpo belo, delicado parece descansar agora. Fico comigo, como tu não quiseste.
"Não se trata de receber mas sim de dar...", dou-vos agora uma recordação minha. Uma imagem para sempre perfeita...
Cara de Cu
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